“Se a sua pesquisa não é acessível para o tio da limpeza, ela não me interessa”.
Uma vez eu postei essa frase dita e compartilhada por anônimos na internet concordando com ela.
Uma professora de universidade pública que tem de pesquisa mais tempo do que eu tenho de vida adulta me chamou a atenção sobre os problemas implícitos nesse discurso. Não concordei com ela na época, mas hoje eu concordo. Precisei me inserir no meio acadêmico para entender que pouco importa o que o fulano acha que a pesquisa deve ser.

A pesquisa não tem que ser acessível. A pesquisa tem que produzir conhecimento e apresentar resultados de acordo com metodologias que exigem rigor, protocolos, procedimentos.

O que deve ser acessível é a informação e a comunicação sobre essa pesquisa. Isso existe há muito tempo e pode ser encontrado em jornais, revistas, programas de TV especializados e hoje em dia, na internet.

Não faltam canais sobre o que quer que seja “traduzindo” conteúdo científico para uma comunicação mais acessível.

Obviamente, todo conhecimento não vai chegar em todo lugar e talvez nem seja interessante que aconteça, porque ninguém da conta de saber sobre tudo. Por isso, instituições como Sesc, Sebrae, Sesi, além de vários programas comunitários das universidades públicas buscam levar conhecimento sobre diversos assuntos até aos lugares mais remotos.

Por cerca de 7 anos eu busquei adaptar o conhecimento acadêmico sobre quadrinhos e cultura pop para uma linguagem mais acessível em diversos sites que escrevi.

Eu também tenho o hábito de recorrer a blogs específicos quando não entendo uma determinada linguagem. Por exemplo, quando tive meus primeiros contatos com os textos do Deleuze eu não só não entendia nada, como não tinha repertório para acessar as informações contidas neles. Então, eu recorria a blogs de estudantes de filosofia. Nossa, me socorreram tantas vezes! Ou eu recorria a algum amigo que entendesse e pedia que me ajudasse.

Essa história de “se sua pesquisa não é acessível, ela não me interessa” só demonstra profundo conhecimento de muita gente sobre como funciona o processo científico e tudo bem, ninguém é obrigado a saber. Por isso que as pessoas costumam buscar certos conteúdos mais acessíveis.

E é isso, pessoas interessadas em aprender certas coisas, procuram meios de acessar determinados conhecimentos. Pessoas que não estão interessadas, não vão ligar para o que você faz só porque você está tentando ser mais palatável para um grupo de desconhecidos.

E por que tô dizendo isso? Porque muitas pessoas com acesso a educação e informação não se interessam por nada que não diga a respeito a seus próprios umbigos. Sei disso porque em 99% das vezes que alguém disse abobrinha sobre algo que eu de fato estudo e já cansei de publicar textos, vídeos, palestras, e eu apontei à pessoa sobre seus equívocos, preconceitos ou problemas em seus discursos, eu saí como a esnobe, feminazi, sabe tudo, mal amada, aquela lá, velha e gorda, exibida, e por aí vai. Ninguém aceita ser contrariado em suas convicções.

Então, hoje eu publico no meu blog ou em poucos sites, saí de praticamente todos os grupos de Facebook e não pretendo mais “chamar a atenção” de ninguém. Quem tá interessado em se desconstruir, aprender sobre alguma coisa, não faltam sites e meios pra isso.

Eu não vou ficar com a responsabilidade de corrigir adultos que têm acesso à informação. Essas pessoas sabem que estão erradas e não se importam. Várias vezes fui cobrada de ter me posicionado em determinadas situações e todas as vezes que fiz isso, não só acabei me afastando de pessoas, como essas pessoas não mudaram absolutamente nada em suas ações.

Se isso me incomoda muito, eu simplesmente me afasto. Não tenho mais estrutura pra tentar consertar o mundo, sabe? Obviamente, não serei conivente com racismo, homofobia, misoginia, etc, mas eu tô exausta de ficar avisando pra fulano e ciclano que não existe pensar como gordo, que atravessar a rua pq viu um moleque preto chegando é racismo, que não é tribo que se fala, que é imbecil pensar em dia do hétero, etc…

A galera tem que se fortalecer em seus movimentos e parar de tentar explicar as coisas pra quem não quer entender. Pesquisadores têm que seguir fazendo pesquisa de forma ética e responsável sem se preocuparem em ainda ter que usar Tim Tok ou qualquer outra mídia da moda pra comunicar algo que passaram anos estudando. Se puderem fazer isso com o Átila faz, ótimo, mas comunicadores estão aí pra isso! Que o diga a minha amiga Tariana que é doutora em comunicação nuclear (sim, ela é foda e ainda é digital influencer, hehe).

Quanto a mim, vou deixar pra falar sobre o que eu pesquiso em meus artigos e textos acadêmicos. Nos momentos de lazer, vou me ater a falar sobre creme de cabelo, depilação, relacionamento, pets e viagens que eu me estresso menos.

Em 2020 eu tive a honra de ser convidada a participar de um projeto encabeçado pela prof.ª e filósofa Janyne Satler, da Universidade Federal de Santa Catarina. O projeto que busca divulgar uma filósofa por mês foi hospedado no Germina Blog, e eu fui incumbida de relacionar as amazonas das histórias em quadrinhos da Mulher-Maravilha às amazonas mitológicas apresentadas pela escritora Christine de Pizan, em sua obra Cidade das damas, de 1405 e que é considerada uma das primeiras obras feministas que se tem notícia, mesmo antes do termo ter sido cunhado e muito antes da publicação de Uma reinvindicação dos direitos da mulher, de Mary Wollstonecrat.

Eu não conhecia Christine de Pizan antes desse convite e fiquei encantada com Cidade das damas na mesma proporção que fiquei chateada de nunca ter ouvido falar dela antes em nenhuma bibliografia ao longo de toda minha vida. Em seu livro, além de um prefácio maravilhoso onde Pizan explica os motivos de escrever, o mito das amazonas que ela traz é muito mais próximo da realidade recém-descoberta sobre essas guerreiras do que qualquer outro mito popularizado por autores do sexo masculino.

Esse é um dos artigos que mais tive o prazer de escrever e espero que alcance o maior número de pessoas possível, pois ele não se refere apenas às questões históricas ou mitológicas sobre as amazonas dos livros e das HQ, mas à forma como mulheres são deliberadamente apagadas da História em todas as áreas do conhecimento e de como as desigualdades de gênero sempre incomodaram mesmo quando não tínhamos acesso a meios de denunciá-las:

“Essa versão de Perez estabelece então que os fatores determinantes para o surgimento das Amazonas e da Mulher-Maravilha estão relacionados à violência imposta pelos homens, que leva as mulheres a precisarem se proteger deles em um lugar fora de seu alcance, e ao amor das deusas pelas Amazonas, que lhes concedem dons e presentes para que possam viver de forma digna e harmoniosa, longe dos conflitos provocados pelo patriarcado.”

Confira o artigo na íntegra aqui: Germina Blog – Christine de Pizan

No filme A Chegada ( Arrival, 2016), a tradutora e especialista em línguas vivida por Amy Adams, propõe que a forma como adquirimos uma determinada linguagem poderia influenciar nossa percepção do tempo, como se ao desenvolvermos processos cognitivos relacionados à aquisição de determinadas línguagens, seríamos capazes de entender o passado e o futuro de forma não linear.

Bom, a linguagem é possivelmente um dos elementos mais estudados quando o assunto é cultura. Sua aquisição, desenvolvimento, interpretação e os processos que a envolvem formam um vasto acervo de pesquisas em diversas áreas. Mas será que ela influenciaria nossa percepção do tempo e de outras coisas?

De acordo com o estudo “The Whorfian Time Warp: Representing Duration Through the Language Hourglass” (Distorção temporal whorfiana: representando duração por meio da ampulheta da língua, em português), publicado em 2017 no jornal da APA (Associação Americana de Psicologia), os conceitos abstratos, como a percepção da duração do tempo, não são universais. (Matéria publicada originalmente aqui)

Ou, seja, a hipótese de  Sapir-Whorf  defende que o processo cognitivo envolvido na aquisição e desenvolvimento de certas línguagens poderia influenciar na forma como compreendemos certos conceitos, ao contrário do que diz um dos maiores linguístas do mundo, Noam Chomsky.

Para Chomsky, a evolução humana e a do cérebro ajudaram a determinar a formação das línguas. “Quanto mais você examina os argumentos de Whorf, menos sentido ele faz”, disse o linguista Steven Pinker em 1994, em seu livro O Instinto da Linguagem.

Ainda assim, alguns experimentos mais recentes divulgados pelo Journal of Experimental Psychologydemonstraram que pessoas de diferentes países interpretam o tempo a partir da maneira como pensam o mundo, ou seja, a quantificação e a amplitude do tempo são entendidas de forma diferente por cada grupo estudado. “O que tudo isso sugere é que, sob certas condições, a linguagem pode ter um peso maior que a rapidez de pensamento. Isso quer dizer que somente o fato de seus pensamentos serem em certo idioma já pode ser responsável por uma desvantagem em determinada tarefa”¹.

De qualquer forma, para quem se interessa pelo assunto, existem estudos que apontam que o clima influencia na formação das línguas, ou que cada língua exige um processo cognitivo diferente para sua aquisição e isso determinaria nossa facilidade ou dificuldade em assimilar certos conteúdos. Por exemplo: a língua japonesa é formada por ideogramas, figuras que significam palavras. Assim como é feito na leitura de uma história em quadrinhos, precisamos ativar dois campos distintos do cérebro para realizar a interpretação da imagem e do texto simultaneamente. O que significa que ao falarmos japonês ou lermos uma HQ ou ao assistirmos um filme com legendas, estamos ativando partes do cérebro que não são normalmente usadas na leitura de um texto em português, por exemplo*.

Os efeitos que esses processos implicam são extremamente significativos. De acordo com diversos estudos apontados pela organização Dana, os processos cognitivos envolvidos na aquisição de outras línguas são responsáveis pela nossa melhor apreensão de conteúdos ligados a outras áreas do conhecimento que não possuem relação com a línguagem, como maior desenvolvimento do raciocínio lógico, possibilitando melhor desempenho em matérias exatas, desenvolvimento do pensamento crítico, relacionado à filosofia e política e melhor desempenho social, empatia, entre outros benefícios ligados à saúde também: pessoas bilíngues demoram mais a desenvolver demência e Alzheimer se comparadas às pessoas que falam apenas uma língua.

Portanto, se a linguagem não influencia em nossa percepção do tempo, a aquisição de diversas linguas nos proporciona maior compreensão de outros fenômenos, eventos e conhecimentos, além de preservar nossa sanidade mental por mais tempo.  O que por si só já justificaria a matrícula em uma escola de idiomas, não é mesmo? Exemplo de como somos beneficiados ao aprender outras línguas é que a reflexão proposta neste texto só foi possível com a fuência em inglês, possibilitando que tenhamos acesso a um maior número de matérias e pesquisas sobre um determinado assunto, para que possamos refletir sobre ele com maior profundidade e propriedade.

*A linguagem é a capacidade que os seres humanos têm para produzir, desenvolver e compreender a língua e outras manifestações, como a pintura, a música e a dança. Já a língua é um conjunto organizado de elementos (sons e gestos) que possibilitam a comunicação

Saiba Mais:

¹ http://super.abril.com.br/comportamento/o-idioma-que-voce-fala-altera-sua-percepcao-do-tempo/
http://revistagalileu.globo.com/Cultura/noticia/2016/11/entenda-teoria-linguistica-do-filme-chegada.html

Desde que comecei a me envolver com estudos de gênero, feminismo e cultura pop, tenho acumulado alguns desafetos, principalmente entre o público masculino. Em todas as vezes que eu expressei que há uma forte relação entre representação da violência sexual contra mulher e pornografia como recursos narrativos que reforçam a cultura do estupro, fui prontamente contrariada, quando não ameaçada, por leitores de quadrinhos e até mesmo colegas acadêmicos.

Há uma frase que corre no senso comum que diz que se feminismo existisse para agradar aos homens, se chamaria feminismo liberal ou patriarcado ou qualquer outro termo que não contrarie a visão de mundo de grande parte dos homens. Isso é esperado, afinal, todos são aliados até a página 2, quando lhes é requisitado que abram mão de certos privilégios, entre eles, o de nos objetificar sem terem que lidar com qualquer consequência sobre esse ato.

Então, me pergunto, quantos homens que não concordam que violência sexual contra mulher nos quadrinhos reforça uma cultura que, em última instância nos mata diariamente, leram os livros da Margaret Atwood ou assistiram à série O conto da Aia?

Estupro e violência como recurso narrativo para justificar o protagonismo masculino ou a superação de personagens femininas não é novidade. No entanto, quando esses recursos são atravessados pela misoginia, eles são dispostos como entretenimento por meio de um recorte que nos objetifica e sexualiza até o ponto de nos desumanizar completamente. Ora, um homem que se entretém com a imagem de uma mulher sendo constantemente estuprada e violentada e que consegue seguir a narrativa sob a justificativa que for, como a de que essas expressões são na verdade denúncias, não mente só para si, mente para a sociedade e, principalmente, para as mulheres à sua volta. Denúncias não são esteticamente prazerosas ou interessantes, não existem para entreter alguém. Denúncias são desconfortáveis, incômodas, não servem à masturbação masculina, como ocorre com a maioria esmagadora desse tipo de representação masculina, sem a menor tentativa de se esconder isso. Já vi dono de editora e youtuber postando foto de quadrinhos com lenços umedecidos e hidratante em uma menção clara de para que servem essas narrativas.

Já em histórias que visam subverter esse male gaze, esse olhar predador observado por meio dos closes escolhidos por diversos autores, as cenas de violência e estupro são incômodas, não são esteticamente sensuais e caso alguém obtenha prazer por meio delas, isso é indício de problemas sérios relacionados à misoginia e disfunção sexual, afinal, obter prazer por meio da imposição de dor e sofrimento do outro sem seu consentimento, não é atitude de pessoas sexualmente saudáveis. E não, não há consentimento das personagens violentadas em histórias em quadrinhos uma vez que elas não existem e são retratadas a partir do olhar predador de seus autores.

Manara

Entrar no mérito de que se trata de uma fantasia, de uma expressão catártica, de que não há relação entre consumo de pornografia e violência é só uma tentativa inútil de defender a si mesmo, uma vez que os estudos que apontam a relação entre reprodução e consumo massivo de certas produções existem há décadas e são bem acessíveis. O Brasil, por exemplo, é o país que mais consome pornografia trans e é também o que mais assassina pessoas trans. Não precisa ser muito inteligente para concluir que pornografia e violência não são exatamente expressões artísticas que os enobrecem como seres humanos.

Apontar moralismo nos discursos das feministas também é mais clichê do que andar para frente. Primeiro que feministas não têm o poder de acabar com essas produções e nem têm essa intenção. O que se propõe é que haja maior diversidade de narrativas, para que não se perpetue a narrativa única sobre nossos corpos e que se consuma qualquer produção com um olhar crítico. Se você é homem e não vai deixar de consumir certos produtos, ao menos assuma que sabe que eles nos são nocivos e busque equalizar esse consumo por meio do consumo e divulgação de outras histórias que não privilegiem apenas o olhar masculino sobre as mulheres, promova a leitura do que nós produzimos, reflita sobre o que consome.

É muita ostentação de privilégio se incomodar com o que mulheres falam sobre certos tipos de quadrinhos em vez de se incomodar com o fato de sermos diariamente assediadas e mortas. É muita ostentação de falta de maturidade pensar que mulheres estejam promovendo censura ou queima de gibis em vez de se preocupar com a quantidade de notícias diárias sobre feminicídio. Um homem que se incomoda mais com uma HQ do que com como as mulheres em sua vida lidam com o medo constante e vivem em uma sociedade que as violenta apenas por serem quem são, é justamente o tipo de homem que Marilyn Frye descreveu em 1983 ao afirmar que homens heterossexuais são homoafetivos: guardam sua admiração e afeto apenas para outros homens e apenas mantém relações sexuais com mulheres.

Quantos homens leitores de quadrinhos e que se sentem tão ameaçados por nossos discursos compram quadrinhos produzidos por mulheres? Quantos têm entre seus ídolos algumas mulheres?

E, bom, não sou feminista porque estou preocupada com o que homens pensam ao meu respeito ou para agradar qualquer pessoa se não a mim mesma. É bom ter aliados, mas se dependêssemos exclusivamente disso para seguir em frente, não teríamos acesso ao voto, a estudo, a nada.

https://gauchazh.clicrbs.com.br/cultura-e-lazer/livros/noticia/2019/07/druuna-e-a-estetizacao-do-estupro-polemica-hq-esta-de-volta-ao-brasil-cjxko335c02ma01pkf1pmnm9s.html

MARINO, Daniela; MACHADO; Laluña; LHORET, Danielle. QUADRINHOS ERÓTICOS NA ERA DIGITAL: O PROTAGONISMO FEMININO E O MALE GAZE. Disponível em:

http://www2.eca.usp.br/jornadas/anais/5asjornadas/artigos.php?artigo=q_historia/daniela_et_al.pdf&jornada=5

BOFF, Ediliane de Oliveira. De Maria a Madalena: representações femininas nas histórias em quadrinhos. 2014. Tese (Doutorado em Interfaces Sociais da Comunicação) – Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014. Disponível em: < http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27154/tde-20052014-123753/pt-br.php>

CRUZ, Angélica Lima. O olhar predador: a arte e a violência do olhar. Revista Crítica de Ciências Sociais, nº 89. 2010, p. 89-109. Disponível em:< https://journals.openedition.org/rccs/3735?lang=en> .

SANTANA, Léa Menezes de. Tem pornô para mulher? Uma abordagem crítica da pornografia feminista. Dissertação de Mestrado – Universidade Federal da Bahia, 2016. Disponível em: <https://repositorio.ufba.br/ri/handle/ri/18873 >

Arte da Camila Queiroz

Em 2018 eu concluí o mestrado e apresentei minha dissertação sobre a importância das gibitecas como polos de fomento à cultura e de exercício da cidadania.
O resumo é esse aqui e ela pode ser conferida no repositório digital da USP ou fisicamente na Gibiteca Municipal de Santos e na biblioteca da ECA/USP.

O presente trabalho visa buscar maior compreensão acerca do papel das gibitecas como espaços que servem a um propósito mais amplo que apenas armazenar revistas de histórias em quadrinhos. Como apontam Bari (2008), Nogueira (2017) e Vergueiro (1994), o aumento no número de espaços dedicados exclusivamente à leitura de histórias em quadrinhos no Brasil tem sido observado desde o início dos anos 1990, da mesma forma que observou Vergueiro (2017) em relação ao aumento no número de publicações em quadrinhos no país. Diversos fatores podem ter contribuído para o aquecimento do mercado nacional de quadrinhos, entre eles, o advento da internet, que possibilita que os autores possam divulgar seus trabalhos a uma quantidade cada vez maior de leitores; a indicação dos Parâmetros Curriculares Nacionais para que os quadrinhos sejam usados em sala de aula; a possibilidade de publicação de histórias em quadrinhos por meio de editais estaduais; e o processo de legitimação das histórias em quadrinhos como bens culturais de mesmo valor que outras expressões artísticas, como previsto em Carvalho (2017). A hipótese na qual se baseia a pesquisa é de que as gibitecas podem constituir polos de fomento à cultura e de exercício da cidadania ao promoverem eventos para divulgação dos quadrinhos e disponibilizam seus acervos gratuitamente aos cidadãos das comunidades onde estão inseridas. A partir da perspectiva de teóricos da Comunicação como Jesus Martin-Barbero (1997, 2000) e Nestór Canclini (1999) sobre a importância dos eventos sociais para a compreensão dos fenômenos de comunicação, principalmente no que tange à América Latina; e as considerações de teóricos da cultura como Raymond Williams (1961, 2008) e dos Estudos Culturais de Matellart e Neveu (2002) sobre os aspectos sociais do acesso à cultura, o objeto a ser analisado é composto pelos eventos ocorridos na Gibiteca Municipal de Santos entre os anos de 2013 e 2016, período em que o local presenciou o aumento de mais de 100% de atividades oferecidas aos seus frequentadores em comparação aos anos anteriores. Para a análise destes eventos são utilizados estudo de caso, etnografia, entrevistas e pesquisa bibliográfica que buscam relacionar as considerações dos autores elencados à observação participativa da autora ao longo dos anos mencionados. O acesso à cultura como uma forma de exercer a cidadania é defendido por Marshall (1967) e complementado por teóricos da Geografia Cultural (CUCHE, 2002; COSGROVE; 2007; CORRÊA, ROSENDAHL, 2007) quando se referem à relevância de certos espaços para a construção e aquisição de conhecimento para determinados grupos. Em relação a esses grupos, que no caso da Gibiteca são seus frequentadores, suas interações remetem ao que Pustz (2000) atesta sobre a existência de uma cultura específica de histórias em quadrinhos, cujos elementos constitutivos são específicos e compartilhados pelas pessoas que consomem seus produtos. Assim, por meio da exposição dos dados coletados e da bibliografia pertinente à pesquisa, foi possível concluir se a hipótese inicial se confirma, possibilitando então, que o debate acerca da relevância das gibitecas seja expandido.

Dissertação em PDF nesse link.

Também participei de eventos e ministrei palestras sobre o tema:


E na Aspas tive o prazer de conversar sobre o assunto com minhas maiores referências:




Eu e a Laluña fomos convidadas pelo Sesc Catanduva a produzir alguns vídeos sobre a produção feminina de quadrinhos. Apesar de serem curtinhos, eles conseguem traçar um panorama das HQ produzidas por mulheres ao longo da História, no Brasil e no mundo. Edição dos vídeos é de @ggustaaa

1º- As pioneiras nos quadrinhos: Nesse episódio nós iremos abordar a trajetória das pioneiras nas histórias em quadrinhos dos  EUA, Europa e Brasil, passando pelas cartunistas sufragistas da primeira onda do Feminismo nos EUA e artistas como Pagu e Nair de Teffé no Brasil. Por meio desse panorama, será possível refletir sobre as causas que levaram tais artistas a serem frequentemente apagadas dos livros e publicações sobre a história dos quadrinhos.

2º – Panorama da produção de quadrinhos no Brasil – Além de apresentar iniciativas que têm sido tomadas ao longo dos anos para aumentar a visibilidade das quadrinistas brasileiras, nesse episódio iremos mostrar como a produção feminina de HQs no Brasil é composta de uma enorme diversidade de traços, técnicas e temas. O objetivo é apontar que é um equívoco acreditar que essa produção se limite a um único estilo ou tema.

3º – Mulheres e quadrinhos ao redor do mundo – Mangás, banda desenhada, fumetti , historietas, são alguns dos nomes pelos quais os gibis são conhecidos em outros países e nesse 3º episódio nós faremos uma viagem pelos quadrinhos produzidos por autoras de diversos países para que possamos refletir sobre as características que os aproximam ou afastam das nossas publicações. 

4º -As mulheres no mercado mainstream – Como são retratadas as personagens femininas nos quadrinhos mainstream e o que isso significa para a presença e permanência das mulheres no meio dos quadrinhos ou até mesmo para as leitoras ? Como o male gaze (olhar masculino) tem sido responsável pelo afastamento das mulheres na indústria de HQs em mercados como o estadunidense e como as autoras têm buscado subverter essa lógica? Nesse último episódio buscaremos responder a essas perguntas encerrando a apresentação com uma reflexão sobre o impacto dos filmes de super-heroínas lançados nos últimos anos.

Bate-Papo sobre Mulheres e Quadrinhos

Organizado por mim e pela Lalunã Machado, o livro Mulheres e Quadrinhos é ganhador de dois troféus HQMIX: melhor livro teórico e melhor publicação MIX de 2019.

À venda na Amazon com sobrecapa comemorativa desenhada pela Luiza Lemos

Em uma iniciativa inédita, a editora Skript lança um livro indispensável aos apaixonados pela nona arte: Mulheres & Quadrinhos. São quadrinhos, entrevistas e artigos com mais de 500 páginas e 120 convidadas, é organizado por Dani Marino e Laluna Machado. A obra é uma celebração das mulheres neste universo. Por décadas, as histórias em quadrinhos foram estigmatizadas. Frases como “é coisa de criança”, “não é arte” e “é leitura de menino”, foram tão repetidas que alcançaram, para alguns, o falso status de verdade. Mas, essas frases, não retratam a realidade. Os quadrinhos são uma das mais complexas formas de arte e podem ser apreciados por crianças e adultos, meninos e meninas, homens e mulheres. Assim como os quadrinhos, as Mulheres também foram estigmatizadas. Porém, existe um processo de mudança acontecendo. Esta obra busca celebrar a nova realidade. Afinal, como já disse Elisa Lucinda: “Sei que não dá para mudar o começo, mas, se a gente quiser, vai dá para mudar o final!”. Como uma orquestra que reúne diversos instrumentistas para, em uníssono, tornar essa reunião algo ainda mais belo, a obra MULHERES & QUADRINHOS reúne textos de pesquisas, entrevistas, contos e quadrinhos, escritos e desenhados por mulheres. Porém, este não será um material exclusivo para elas. É uma publicação para todas pessoas que amam a Nona Arte.
Nessa versão gratuita em PDF é possível conhecer alguns dos artigos do livro na íntegra: Mulheres e Quadrinhos Universidade

Para saber mais:

https://www.facebook.com/media/set/?set=a.10223326869822683&type=3

Burncast

https://www.burnbook.com.br/podcast/burncast-31-mulheres-quadrinhos-pt-1/ 2 https://www.burnbook.com.br/podcast/burncast-32-mulheres-quadrinhos-pt-2/

https://facadax.com/2020/11/27/mulheres-quadrinhos/

Filme dirigido por Oliver Stone, Snowden estreou em 2016 e conta com um elenco de ponta: Nicolas Cage, Joseph Gordon-Lewitt (Snowden), Shailene Woodley (da série Divergente), Zachary Quinto (Star Trek) e vários outros nomes tão conhecidos quanto os que acabei de citar.

Baseado no livro The Snowden Files, de Luke Harding, a história de um dos homens mais visados do mundo também foi contada em um documentário dirigido por Laura Poitras e, todas as versões, embora lembrem muito thrillers sobre espionagem, tratam de fatos que são mais reais do que sonha nossa vã filosofia.

Snowden ficou conhecido por roubar e divulgar projetos e informações da NSA – Agência de Segurança Nacional Americana e, a julgar pelo conteúdo desses arquivos, o mundo deveria no mínimo estar em polvorosa. Porém, como estamos falando de crimes contra a privacidade cometidos pelo país mais poderoso do mundo, então fazemos filmes.

Em um clima tenso, acompanhamos toda trajetória de Snowden, desde a sua admissão na serviço secreto americano até os dias de hoje, em que ele vive em asilo político na Rússia. Grande parte da película é narrada em flashbacks, a partir de seus depoimentos à cinegrafista Laura Poitras e aos jornalistas Glenn Greenwald e Ewen McAskill, ambos do jornal britânico The Guardian. Estes encontros foram realizados em um hotel em Hong Kong, a pedido do próprio Snowden, que, temendo pela própra vida, resolveu compartilhar seus arquivos com pessoas que julgava confiáveis o suficiente para que sua integridade não fosse ameaçada.

Mas o que levou alguém com um emprego tão bom e bem remunerado a querer jogar tudo pro alto e correr risco de ser preso ou assassinado?

Snowden cometeu crime de alta traição e pelo que sabemos dos filmes conspiracionistas, a essa altura ele já estaria morto, se não fossem as medidas que ele tomou para garantir que suas informações fossem espalhadas pelo mundo, de forma que sua morte seria no mínimo suspeita. Ainda assim, ele colocou a própria vida em jogo para garantir que o mundo soubesse que a NSA não só tem acesso a TODOS os aparelhos eletrônicos que são conectados via internet do mundo, como também teria implantado dispositivos em sistemas de segurança de diversos países, incluindo o Brasil, que são capazes de criar um blackout energético sem precedentes, caso os EUA se sintam ameaçados de alguma forma.

O principal programa de vigilância desenvolvido por Snowden  é capaz de arquivar dados de conversas de Whatsapp, Messenger, Skype, telefones, de acordo com palavras chaves determinadas pela própria NSA. Tais dados compõem um sistema de tamanho imensurável e cujo backup é constante, mesmo que toda a energia dos EUA seja desligada. Ou seja, basicamente, os EUA vêm coletando informações privadas de todo mundo a partir de critérios que eles julgam necessários e caso alguma dessas informações seja entendida como ameça, então eles simplesmente ativam seus dispositivos e geram um blackout em algum país.

No entanto, o conflito interno de Snowden fica mais acentuado quando ele se dá conta que esses critérios podem ser determinados por pessoas que não têm o devido preparo ou patente para realizar essas buscas. O filme dá a entender que funcionários com posições equivalentes a de estagiários poderiam simplesmente ativar uma câmera de notebook remotamente e invadir a privacidade de qualquer pessoa, QUALQUER PESSOA MESMO!

Mas se você já estava ficando paranóico de pensar que está sendo vigiado agora mesmo, o que não é impossível, como se sentiria ao entrar em uma sala e se deparar com pessoas encontrando alvos via satélite, pelo sinal do celular, e enviando a suas localizações aos pilotos dos caças americanos em zonas de conflito? Imagine que em a cada tiro que você dá em um jogo de vídeo-game, uma pessoa é assassinada. Muito Black Mirror? Pois é essa a sensação que temos em uma cena que Snowden pergunta a um dos colegas como ele sabe que o alvo em questão é de fato um alvo, logo depois de assistir um homem sendo explodido em um monitor de TV e a resposta é: “não sabemos”.

Várias cenas deixam bem claro como a informação é produto mais valioso de nossa era e que os investimentos dos EUA em tecnologia bélica fazem qualquer país parecer muito amador quando o assunto é espionagem e guerra. Por isso, ainda que pareça haver um certo exagero na representação de Snowden como um grande herói, ele realmente arriscou sua vida para conseguir mostrar ao mundo que estamos em guerra, mas uma guerra silenciosa.

E se tudo isso lembra mesmo uma ficção, uma distopia, a verdade é que a realidade é bem mais complexa e grave do que qualquer ficção que conhecemos, como por exemplo o que ocorre em Capitão América e o Soldado Invernal. Se você não havia atentado para o conteúdo extremamente ideológico que critica justamente o controle que os EUA exercem sobre a política global e sobre nossa privacidade, bom, talvez seja a hora de assisti-lo novamente.

“Isso não é liberdade. É medo.”

Um dos filmes de maior crítica social e política do universo de super-heróis, Capitão América e o Soldado Invernal não é uma história sobre amizade. Aliás, bem longe disso. Se trata de uma história muito atual, infelizmente, de como um grupo extremamente poderoso e cujos ideais nazistas visam eliminar uma parcela da população sob o argumento de que um genocídio poderia colocar o mundo de volta nos eixos, já que só sobrariam as “pessoas de bem”. Parece familiar?

Então, não é assustador que um pequeno grupo de pessoas que se julgam superiores ao resto do mundo acredite que suas ações são nobres e que justificariam o extermínio de milhões de cidadãos, sem que estes tenham cometido qualquer crime? Mas veja, estes cidadãos em algum momento se expressaram com palavras que foram interpretadas pelo algorítmo do sistema de vigilância- sim, Big Brother da distopia 1984!- como ameaçadores, tal qual ocorre com o sistema desenvolvido por Snowden e que hoje é usado pela NSA.

Ou seja, em um dado momento do filme, entendemos que o sistema só existe porque concordamos com ele, clicamos em “sim, aceito tais configurações desse aplicativo” e entregamos nossa privacidade em nome de uma segurança ilusória, que em vez de nos proteger, nos encarcera ainda mais.  Em Capitão América, aceitamos abrir mão do nosso direito à privacidade em nome do medo que sentimos de sermos atacados, quando aqueles que deveriam nos proteger, são os grandes vilões.

Essa mesma questão já havia sido tratada em Minority Report, mas no lugar do sistema, que provavelmente estava em fase de desenvolvimento, há os precogs, pessoas com habilidades precognitivas que os permitem “enxergar” o futuro antes que ele se realize, evitando crimes e levando pessoas à prisão antes que tenham a consciência de que cometeriam um.

Portanto, estamos lidando com um sistema que tenta prever a possibilidade de determinadas pessoas agirem de forma terrorista, baseado em conversas e interações online. As perguntas que ficam são: ele é 100% eficaz? Se é, porque não conseguiu prever os últimos ataques na Europa, já que ele filtra informações do mundo todo? A inteligência artificial seria capaz de agir de forma totalmete imparcial? As pessoas por trás dos monitores da NSA são capazes de agir de forma imparcial? Já sabemos as respostas, então, qual seria nossa alternativa diante de fatos tão assustadores?

Quando dizemos que a ficção tem entre suas funções nos fornecer elementos para lidar com a realidade, é exatamente disso que estamos falando. Ideologias, mensagens subliminares, críticas, avisos… A ficção vem tentando nos alertar de uma série de coisas que muitas vezes preferimos ignorar em nome do entretenimento, esquecendo que para se entreter, você não precisa abrir mão da crítica ou da razão. Podemos nos entreter e aprender algo, por que não? O recado está sendo dado. Você pode escolher ouvir ou pode fingir que nada está acontecendo, pode escolher a pílula azul ou a vermelha, Neo. E aí? Qual será sua escolha?

O próprio fato de eu estar falando sobre esse filósofo sul-coreano aqui, já ilustra muito do que ele mesmo postula sobre as relações e comportamentos contemporâneos. E se você ainda não tinha ouvido falar de Byung-Chul Han, pode esperar para vê-lo por aí por algum tempo em redações de vestibulares, noticiários, reflexões filosóficas em geral, pois, ao que tudo indica, ele é o novo Bauman.

Se até recentemente termos como modernidade líquida, relações líquidas, amor líquido, entre outros conceitos líquidos eram bem frequentes em diversos textos sobre os mais variados assuntos, possivelmente as expressões usadas por Han passem a circular entre nós de forma mais corriqueira em breve.

Autor de diversos ensaios, Han é naturalizado alemão e é professor na Universidade de Artes de Berlim. E, muito embora seus textos não sejam voltados para o público em geral, uma vez que textos filosóficos de tradição alemã não costumam ser muito palatáveis para quem está fora da Academia, diversos veículos têm se dedicado a “traduzir” seu pensamento para uma linguagem mais acessível, pois suas considerações são muito relevantes em variados âmbitos, principalmente para que nós pensemos sobre o tipo de relações que temos estabelecido com os outros e conosco.

Eu chegaria até ele mais cedo ou mais tarde devido à minha formação acadêmica, mas, como as redes promovem esse excesso de positividade que Han explica em A Sociedade da Transparência, foi só um conhecido postar em sua timeline que gostava muito do autor, que logo em seguida algumas matérias sobre ele “pipocaram” no meu feed e eu descobri que ele também é um dos autores selecionados para o processo seletivo nas pós-graduações em Comunicação da USP. Ou seja, os algoritmos “estavam certos” de que eu deveria ler Han.

Não sei se posso dizer que todos devem ler, porque, apesar de seus ensaios serem vendidos aqui no Brasil em formato de pocket books, pequenos e curtinhos, Han não oferece uma leitura fácil para quem não está acostumado a ler filósofos europeus: existe aquele excesso de repetições da mesma ideia usando analogias diferentes que nos dá a sensação de “encheção de linguiça”. Por outro lado, a quantidade de vezes que certos termos são repetidos, faz que que seja quase impossível que ao final de cada livro você não os tenha fixado totalmente. Mas, muitos dos termos são referências a outros autores importantes, que, caso você não esteja familiarizado, talvez tenha um pouco mais de dificuldade para se situar na leitura.

Um desses conceitos é justamente o de positividade. Em Han, não se trata da ideia mística tão difundida sobre “lei da atração” e outras pseudofilosofias de autoajuda, onde quem pensa positivo atrai coisas positivas. Também não se trata da corrente filosófica prevista em Auguste Comte exatamente. Por positividade Han se refere à ideia de reforço do mesmo:

As mídias sociais e sites de busca constroem um espaço de proximidade absoluto onde se elimina o fora. Ali encontra-se apenas o si mesmo e os que são iguais; já não há mais negatividade, que possibilitaria alguma modificação. Essa proximidade digital presenteia o participante com aqueles setores do mundo que lhe agradam. Com isso, ela derruba o caráter público, a consciência pública; sim, a consciência crítica, privatizando o mundo. A rede se transforma em esfera íntima ou zona de conforto. A proximidade pela qual se elimina a distância também é uma forma de expressão da transparência. (Sociedade da Transparência, p. 81)

Em outros textos, onde falo sobre a importância da representação da diversidade nas produções, sob o argumento de que é apenas por meio da convivência com o outro que podemos ter empatia ou qualquer perspectiva de evolução como seres humanos, busco enfatizar que o excesso de positividade descrito por Han, além de nos fazer mais limitados intelectualmente, nos é extremamente nocivo em aspectos de socialização, pois nos priva diálogo. Em uma sociedade onde não interagimos com nada que é diferente, acabamos apenas endossando as opiniões que nos são confortáveis e não saímos de nossas bolhas: “Nas experiências encontramos o outro; mas nas vivências, ao contrário, sempre encontramos a nós mesmos”.  Não à toa, essa mesma perspectiva sobre a alteridade dos discursos e a importância da ficção para que nos tornemos pessoas mais empáticas, também é trazida em uma publicação acadêmica de uma importante revista de Comunicação:

Quando nos visualizamos no lugar do outro, ainda que seja impossível entendermos o que se passa em seu interior perante uma determinada situação, conseguimos perceber aspectos seus que são inacessíveis ao outro – e isso, precisamente, por estarmos fora dessa situação. Reduzimo-la a certos traços fundamentais, tornando sua compreensão mais simples e estruturada, ao passo que o outro, existencialmente implicado na situação, se vê sujeito a uma complexa e simultânea torrente de sentimentos, percepções e ideias. Em outras palavras, “tem-se empatia porque se pode estetizar a situação do outro e, com isso, clarificá-la. ( Revista Matrizes, Mare nostrum, mare alienun: identidade, epistemologia e a imaginação flusseriana dos fluxos, p.57)

 Mas a lógica das redes sociais, que rege também nossas relações online e offline, impõe, cada vez mais, que tudo o que é diferente fique fora da bolha, pois assim, nossos comportamentos cada vez mais previsíveis, são mais facilmente mapeados por empresas que visam lucrar com nossas ações e interesses.

Ao recorrer ao conceito do panóptico de Bentham, popularizado por Foucault, Han explica que essa arquitetura carcerária com um arranjo circular das células em torno de um ponto central, sem comunicação entre elas, para que o preso possa ser observado de fora (sabe a prisão Kylin em Guardiões da Galáxia?), correspondia à lógica da nossa sociedade até há algum tempo, porém, a “geografia” da internet pressupõe um enorme espaço descampado onde todos conseguem se observar e vigiar simultaneamente, sem montanhas, sem segredos, sem nada que possa ser ocultado, totalmente transparente.

Prisão Kylin

Essa transparência e o excesso do mesmo, de tudo que é igual teria diversos efeitos negativos para a sociedade. Entre eles, o fato de abrirmos mão de nossa privacidade e liberdade em nome de uma hipervigilância constante que afeta nossas relações interpessoais e de trabalho de maneira significativa:

A sociedade do controle atual apresenta uma estrutura panóptica bastante específica. Contrariamente à população carcerária, que não tem comunicação mútua, os habitantes digitais estão ligados em rede e têm intensiva comunicação entre si. O que assegura a transparência não é o isolamento, mas a hipercomunicação. A especificidade do panóptico digital é sobretudo o fato de que seus frequentadores colaboram ativamente e de forma pessoal em sua edificação e manutenção, expondo-se e desnudando a si mesmos, expondo-se ao mercado panóptico(Sociedade da Transparência, p. 108)

Obviamente, seria preciso outro ensaio para dissecar as percepções de Han sobre a sociedade da transparência, o que não é o objetivo aqui. O intuito desse texto é apenas instigá-lo(a) a procurar saber mais sobre esse autor que tem muito a contribuir com a discussões sobre comportamento, relacionamento e redes sociais na atualidade e cujas considerações dialogam com uma infinidade de produções contemporâneas que podem ser analisadas a partir de sua ótica.

Por isso, deixo aqui outros links sobre o autor e sobre temas que têm relação com os apontamentos dele.

El País:

https://brasil.elpais.com/brasil/2018/02/07/cultura/1517989873_086219.html

https://brasil.elpais.com/brasil/2018/02/09/cultura/1518178267_725987.html

Nexo:

https://www.nexojornal.com.br/expresso/2019/08/27/Por-que-vivemos-na-sociedade-do-cansa%C3%A7o-segundo-este-fil%C3%B3sofo

Depois do escândalo da Cambridge Analytica,  envolvendo a manipulação de dados que poderiam ter influenciado campanhas eleitorais como a de Trump no EUA e na votação do Brexit, na Grã-Bretanha,  a imprensa anuncia a venda de dados de nossos cartões de créditos em uma ação “secreta”coordenada pelo Google e pela operadora de cartões de crédito Mastercard. De acordo com a matéria publicada pela gigante de notícias Bloomberg, o acordo que rastreia dados de compras dos usuários dos cartões mastercard não era de conhecimento de seus milhões de usuários, que também desconhecem as implicações dessa trama a la George Orwell.

Mas você sabe o que significa essa “googlelização” de tudo?

O pesquisador de mídias e professor de direito digital na universidade de Virgínia, nos EUA, Siva Vaidhyanathan, atribui o termo Googlization à forma como o Google tem permeado nossa cultura. De acordo com ele, a mega corporação (qualquer semelhança com as fictícias Umbrella e Skynet é mera coinscidência?) que começou como uma ferramenta de busca e pesquisa digital, disponibiliza uma quantidade inimaginável de arquivos e informações a um simples toque de nossos dedos.

Na perspectiva do autor do livro  A Googlelização de tudo (e por que devemos nos preocupar), esse fenômeno afeta 3 áreas relacionadas à conduta humana: “nós”a partir dos efeitos do Google sobre nossas informações pessoais, hábitos, opiniões e julgamentos; “o mundo”, por meio da globalização de uma estranha forma de vigilância e ao que ele chama de imperialismo estrutural; e o “conhecimento”, a partir de seus efeitos no uso de uma grande quantidade acumulada de conhecimento por meio de livros, bases de dados online e da rede.

Para equalizar e entender este fenômeno é preciso que pensemos de forma crítica, deixando de lado nossa fé quase que religiosa no Google e em sua benevolência corporativa e adotar um olhar mais cético. Uma forma de começar a perceber que não somos os clientes do Google, é entendendo o que somos realmente: seus produtos.

Psicólogos da Universidade da Califórnia em Berkeley publicaram um estudo explicando que a técnica de busca do Google já consegue emular a forma que o cérebro humano relembra de determinada informação, seu processo de busca interno. Os investimentos em espaços dedicados à pesquisa no mundo todo permitem que a empresa seja uma das maiores detentoras de conhecimento sobre inteligência artificial do mundo, colocando seus experimentos em patamares que fazem ficções científicas como o fime Ex-Machina e a série Black Mirror parecerem muito mais reais do que sonha nossa vã filosofia.

Quando publicamos imagens, comentários ou conversamos por meio de aplicativos como o Whatsapp, estamos alimentando esse enorme banco de dados que, entre outras coisas, fornece material para aumentar a complexidade das respostas dos programas de inteligência artificial. A forma como isso acontece é explorada no filme Ex-Machina, de Alex Garland, ganhador do Oscar de Melhores efeitos especiais em 2016. Logo no início do filme, o programador Caleb Smith (Domhnall Gleeson) é convidado a participar de um experimento envolvendo um androide desenvolvido por uma grande corporação que detém o monopólio da tecnologia digital mundial. Embora a empresa tenha um nome fictício, as semelhanças com aspectos atuais nos deixam em dúvida se todo o filme é uma ficção ou se está mais próximo da realidade do que gostaríamos de acreditar.

Ao que tudo indica, o ator Domhnall Gleeson gostou tanto do tema que é um dos protagonistas do 1º episódio da segunda temporada de Black MirrorVolto já (Be right Back). Neste episódio, somos apresentados a um serviço que é capaz de coletar todas as nossas informações disponíveis na rede para criar um programa que simula nossas ações por meio de e-mails, interações telefônicas e outras formas meio assustadoras que nos remetem ao clássico Pet Cemetary, de Stephen King: os mortos nunca voltam como eram (medo!)

Siva Vaidhyanathan diz que o Google não é mau, mas não é moralmente bom também. Nem tampouco neutro – bem longe disso. O Google não nos faz mais espertos. Nem nos deixa mais burros, como pelo menos alguns escritores acreditam. É uma empresa com fins lucrativos que nos oferece uma série de ferramentas que podemos usar de forma inteligente ou não.

No entanto, a própria série Black Mirror nos alerta sobre nossa relação nociva de dependência digital em episódios como o tão comentado Queda Livre (Nosedive – 3ª temporada). Em um futuro não tão distante, nosso acesso a bens e serviços é condicionado à nossa popularidade nas redes sociais, medida a partir das curtidas em forma de estrelas, em um aplicativo onde toda a população mundial está conectada.

Por mais distante que a ficção possa parecer, a National Academy of Science, dos Estados Unidos, realizou um experimento com o Facebook e concluiu que nós somos emocionalmente contagiados e tomamos decisões baseados em nosso feed nas redes sociais. Ou seja, com mais de um bilhão de usuários conectados às redes sociais, é possível concluir que a mediação digital influencia não só as pessoas que estão online, mas as relações sociais de uma maneira geral, pois seu alcance é inimaginável.

Longe de esgotar o assunto, não pretendo deixar ninguém paranóico, mas convido à reflexão sobre nossa relação com as mídias e com a internet de forma que possamos tirar maior proveito delas. Como o pesquisador Siva disse, a internet em si não é boa ou ruim, mas o uso que fazemos dela pode ser extremamente nocivo se não fizermos isso de forma crítica. Portanto, em vez de um futuro distópico de filmes como Os SubstitutosO exterminador do FuturoRobocopMatrix, 1984 e tantos outros, quem sabe a tecnologia não possa nos garantir um futuro onde a morte não seja tão assustadora porque poderemos nos encontrar em San Junipero (3 ª temporada de Black Mirror), não é mesmo?

Ficou interessada no assunto? Então confira o livro que traz os artigos apresentados no seminário de compartilhamento e sigilo realizado em 2016. O livro conta com um artigo meu sobre a ação de grupos exclusivos do Facebook, como o do Minas Nerds:

http://www.obcom-usp.com.br/anais/index.html#ebook